Diminuir a idade penal não só não reduz
a criminalidade como pode agravar ainda mais o problema, excluindo muitos que
quase já não têm direitos.
Por Glauco Faria
“O senhor sabe o que vai acontecer
com esse bandido, esse assassino, esse monstro? Nada. (…) Ele deveria ser
linchado (…). Queria ver esse cara torrando na cadeira elétrica.”
Esses trechos foram extraídos do livro Justiça (Nova
Fronteira), do sociólogo Luiz Eduardo Soares, no qual ele relata o encontro com
um taxista, no Recife. A fala é do condutor, que contava um episódio ocorrido
com um amigo seu motorista de ônibus, morto por um adolescente, menor de 18
anos, em um assalto. Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é
mais vítima do que algoz no País.
“Naquele momento não era o homem que
falava; era seu coração, a sua dor”, refletiu o sociólogo, lembrando que não
era um momento para argumentar porque isso poderia soar agressivo ou
desrespeitoso. E o taxista seguiu seu relato, pensando sobre como seria o
destino da viúva e dos cinco filhos, já que seu amigo era arrimo de família.
Soares ponderou a respeito das dificuldades que a mãe teria para criar os
garotos sozinha, explicitando os riscos a que seriam expostos. “Esses meninos
correm o risco de ir para a rua, envolver-se com drogas, crimes, armas”, no que
seu interlocutor concordou. “Um dia, um deles, desesperado atrás de dinheiro –
talvez para comprar crack – entra num ônibus, rende passageiros e, sem pensar,
atira no motorista e foge”, prosseguiu, concluindo: “o senhor acha que, nesse
caso, se isso viesse a acontecer, o órfão de seu amigo mereceria ser chamado de
monstro? O senhor participaria do linchamento dele? O senhor, se fosse juiz e
se nosso país tivesse pena de morte, o condenaria à morte?”
Durante o resto da viagem o taxista permaneceu calado e, ao chegar ao
destino, finalmente respondeu. “Não”, completando: “nunca tinha pensado por
esse lado”. Como o próprio Luiz Eduardo Soares ressalta, analisar uma história
como essa em todas as suas implicações não é “passar a mão na cabeça de
bandidos”, mas buscar ver a realidade por diversos ângulos e tentar elaborar
alternativas ao problema da violência que acabem não gerando mais violência. E,
ao que tudo indica, a redução da maioridade não é uma solução ideal, e pode
aumentar uma espiral que vitima jovens e adultos todos os dias no Brasil.
O tema eventualmente volta ao debate
publico, geralmente após a repercussão de crimes cometidos por adolescentes.
Agora, a discussão retorna por conta do assassinato de Victor Hugo Deppman, de
19 anos, morto na porta do prédio onde morava, no bairro do Belém, em São
Paulo, em 9 de abril. O jovem que cometeu o latrocínio estava a três dias de
completar 18 anos.
O episódio gerou reações e inúmeras
manifestações favoráveis à redução da idade penal para 16 anos. De acordo com
pesquisa realizada pelo Datafolha em 15 de abril, 93% dos paulistanos são
favoráveis à medida, cuja possibilidade de ser efetivada causa controvérsias no
meio jurídico. Muitos, como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
entendem que não pode haver alteração. “A Constituição prevê inimputabilidade
penal até os 18 anos de idade. É um direito consagrado e uma cláusula pétrea da
Constituição do Brasil. Nem mesmo uma emenda pode mudar isso. Qualquer
tentativa de redução é inconstitucional. Essa é uma discussão descabida do
ponto de vista jurídico”, disse Cardozo, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 29 de abril.
Já outros entendem que só os direitos inscritos no artigo 5º da
Constituição Federal de 1988 seriam imutáveis. De qualquer forma, discutir essa
questão pode ser a oportunidade de se traçar um panorama mais amplo das causas
da criminalidade e sobre medidas que podem realmente combater o seu
crescimento.
“A sociedade passou a
desesperadamente querer uma proteção e a clamar por policiamento nas ruas,
armamentos mais aprimorados, leis e penas mais rigorosas, isso tudo em uma
visão do fenômeno criminal após a sua ocorrência. Depois que ocorreu, punição;
antes, pouca ou nenhuma discussão sobre as causas do crime”, reflete o advogado
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que destaca também a responsabilidade da
cobertura da mídia. “Temos um discurso, que se transformou em uma cultura
social, voltado para a repressão, e não para a prevenção. A mídia tem muita
culpa nisso, pois não encara o crime como uma tragédia, e sim como um
espetáculo. Um espetáculo digno de todos os mecanismos que pode oferecer
televisionamento das operações – se possível do corpo da vítima –, dos julgamentos,
e isso passou a ser um verdadeiro show, um instrumento
de faturamento e de Ibope. Tivesse a mídia encarado o crime de uma forma
correta, poderia ter até extraído lições, discuti-lo.”
O tratamento midiático, por meio da exploração às vezes cruel de episódios
violentos, não leva em consideração algumas estatísticas. De acordo com números
da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa),
instituição responsável pela aplicação de medidas socioeducativas no estado de
São Paulo, 9.016 adolescentes cumpriam alguma das medidas previstas no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) – atendimento inicial, internação provisória,
internação, internação sanção e semiliberdade. Destes, 41,8% estavam ali por
tráfico de drogas, 39% por roubo qualificado, 5,1% por roubo simples e 1,9% por
furto. Os jovens que cometeram latrocínio (roubo seguido de morte), como
no caso de Victor Hugo, correspondiam a apenas 0,9% do total, ou 82
adolescentes, sendo que 33 deles possuíam mais de 18 anos e 49 estavam abaixo
dessa idade.
Ao contrário do que pode parecer, o
jovem, em geral, é mais vítima do que algoz no País. Conforme o Mapa da Violência 2012: Crianças e Adolescentes do
Brasil (Julio Jacobo Waiselfisz, Flacso Brasil/Cebela, 2012), com sua taxa de
13 homicídios para cada 100 mil crianças e adolescentes, os brasileiros
ostentam um trágico 4º lugar entre 99 países do mundo em assassinatos de
pessoas entre 1 e 19 anos, ficando atrás somente de El Salvador, Venezuela e
Trinidad e Tobago. As taxas de homicídio nessa faixa etária cresceram 346%
entre 1980 e 2010, com 176.044 vítimas no período. Em 2010, foram 8.686
crianças e jovens assassinados, uma média de 24 por dia. De acordo com dados do
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da
Saúde, responsável pela notificação de casos de violência doméstica e sexual,
em 2011 foram registrados 39.281 atendimentos de pessoas na faixa etária entre
1 e 19 anos, representando 40% do total de atendimentos computados pelo
sistema.
Mas não é qualquer jovem a principal
vítima da violência no País. Levantamento realizado pelo Centro Brasileiro de
Estudos Latino-Americanos e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais
– Flacso Brasil, intitulado Mapa da Violência 2012: A Cor
dos Homicídios no Brasil, publicado em dezembro de 2012, mostra que,
entre 2002 e 2010, o número de homicídios na população jovem (considerada a
faixa etária entre 12 e 21 anos) caiu 33% entre brancos e, entre os negros,
cresceu 23,4%. No período, morreram 159.543 jovens negros vítimas de
homicídios, e 70.725 jovens brancos.
Obviamente a vitimização de crianças
e adolescentes não chama tanta atenção da mídia, tampouco do poder público. A
situação remete a uma reflexão feita pelo deputado estadual pelo Rio de Janeiro
Marcelo Freixo, entrevistado na edição 121 de Fórum. “A polícia
entra na favela e cinco pessoas morrem, isso cria uma grande comoção? Não.
Porque, na nossa cabeça, essas pessoas já foram julgadas, julgadas pelo nosso
medo. ‘Polícia entra na USP e mata cinco’. Toda a imprensa vai para lá”,
ponderou na ocasião. “A dignidade tem endereço, a decência humana tem endereço,
é de classe.”
RESPONSABILIDADE
PENAL E MAIORIDADE
Em meio ao turbilhão de informações
que passou a circular nas redes sociais sobre redução da maioridade, muitas são
equivocadas. Em geral, para justificar uma mudança na legislação brasileira,
alguns buscam inspiração nas normas de outros países, mesmo sem considerar
certas peculiaridades. Uma delas é confundir idades de “responsabilidade penal”
de determinados lugares, que é quando o adolescente passa a ser
responsabilizado por um ato previsto como crime, com a maioridade penal.
“Todos os países têm em suas legislações uma idade em que criança ou
adolescente começa a ser responsabilizado pelos seus atos infracionais. No
Brasil, essa idade é de 12 anos, sendo que na maioria dos países é de 14”,
explica o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Túlio Vianna. Com base no documento Cross-national Comparison of Youth
Justice, elaborado por Neal Hazel, da Universidade de Salford, é possível
desfazer alguns desses equívocos e verificar como alguns países elaboravam seus
sistemas de Justiça penal em relação a menores de idade até o ano do
levantamento, 2008.
A Organização das Nações Unidas (ONU) sugere que a idade mínima da
responsabilidade penal não seja muito baixa, embora não faça uma recomendação
específica, mas ressalta que é preciso levar em conta os fatores de maturidade
intelectual e emocional. As ponderações e o trabalho do Comitê sobre Direitos
da Criança do órgão fez com que muitos países elevassem esse limite. Em 1977,
Israel mudou a idade de responsabilização de 9 para 13 anos; em 1979, Cuba
aumentou de 12 para 16; em 1983, a Argentina alterou de 14 para 16; em 1987, a
Noruega mudou de14 para 15 e, em 2001, a Espanha elevou de 12 para 14 anos.
Todos com uma idade mínima acima dos 12 anos estabelecidos pela lei brasileira.
Em relação à maioridade, de acordo com o estudo, a idade padrão de
maioridade penal em todo o mundo é de 18 anos. Por sinal, é o que se recomenda
na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989. Contudo, o conceito
de maioridade também tem nuances distintas conforme o país, podendo o
adolescente perder a prerrogativa de responder por seus atos diante do sistema
especial juvenil ou, por outro lado, continuar inserido nele mesmo após ter
atingido a idade para ser processado penalmente como adulto. Na Alemanha,
jovens de 18 a 21 anos podem ter a possibilidade de serem julgados em cortes
juvenis; na Suíça, pessoas até os 25 anos têm penas menos severas do que os que
estão acima dessa idade; e mesmo nos Estados Unidos, que conta com legislações
mais repressivas, estados como Colorado, Havaí e Nova Jersey permitem que
jovens cumpram sua pena integralmente em estabelecimentos para menores
infratores, inclusive depois de terem atingido a idade adulta.
Ou seja, a opinião de que o sistema brasileiro é “leve” não parece
encontrar sustentação quando é feita uma comparação com outros países. Aliás,
em muitos casos a privação de liberdade para um adolescente no Brasil pode até
ser mais severa do que para um adulto, como lembra o advogado André Luís
Callegari, em entrevista ao IHU On-Line. “Não nos damos conta, e ninguém faz
essa análise, mas muitas vezes o menor de idade cumpre uma medida
socioeducativa mais dura do que uma pessoa penalmente responsável. Explico: o
menor de 18 anos, quando pratica um delito, recebe a pena máxima de três anos
de internação. No caso de um maior praticar um homicídio simples, a pena varia
de seis a 20 anos. Se ele for condenado a seis anos e cumprir um sexto da pena,
ficará preso por um ano e poderá trocar de regime, ficando no regime aberto.
Quer dizer, ele sai mais cedo da prisão”, argumenta. “Então, reduzir a
maioridade penal é uma alternativa falaciosa, porque queremos dar uma resposta
à sociedade por meio do Direito Penal. Esse não é o melhor caminho.”
“O ECA não é uma invenção brasileira, é uma lei que representa um
compromisso assumido pelo Brasil na comunidade internacional, a versão
brasileira da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, de novembro
de 1989, ratificada por todos os países com assento na ONU, exceção feita aos
Estados Unidos”, lembra o juiz aposentado João Batista Costa Saraiva,
coordenador da Área de Direito da Criança e do Adolescente da Escola Superior
da Magistratura RS. Ele ainda ressalta que, mesmo entre os estadunidenses, há
uma tendência à adequação aos preceitos previstos na Convenção. “Alguns estados
federais mantinham a pena de morte para menores de 18 anos, mas a Suprema Corte
norte-americana, em 2005, declarou a inconstitucionalidade da pena de morte
para eles, um tratamento diferenciado em relação aos adultos”, pontua. Em 2010,
a Corte retirou da legislação crimes que, fora homicídios, resultavam em prisão
perpétua para jovens, sem direito à liberdade condicional.
Para Saraiva, é um erro fazer
analogias como as de que, se o jovem pode votar aos 16 anos, também deveria ser
responsabilizado penalmente como adulto. “É bom lembrar que o voto aos 16 anos
é facultativo, e a maioria não o exerce antes dos 18 anos. Além disso, são
inelegíveis”, destaca. “Mas desde que o Brasil ratificou a Convenção,
trabalhamos com a perspectiva de que os adolescentes não são incapazes, têm
responsabilidade relativa ao seu status, como sujeito
em desenvolvimento. Ele é responsável, sim, e pode ir preso a partir dos 12
anos. Para a Fundação Casa em São Paulo, por exemplo, ele vai algemado. O que
distingue essa situação do sistema prisional adulto é que existe um escopo
pedagógico no sentido de estabelecer um conjunto de possibilidades que lhe
permita reconstruir sua vida.”
HISTÓRIAS COMUNS
“Tive uma infância muito pobre, mano,
passava fome demais, cara. Quando tinha 12 anos, perdi minha mãe, meu bem mais
precioso, aí fui criado pelo meu pai. Com o passar do tempo, a situação foi
apertando mais, a gente estava sem dinheiro em casa e entrei para o crime.”
Paulo (nome fictício) contou parte da sua história ao repórter Igor Carvalho,
durante a visita do rapper Dexter à
unidade Encosta Norte da Fundação Casa. O jovem, que tem hoje 18 anos, vivia no
Itaim Paulista, distrito extremo da zona leste de São Paulo, e foi preso por
assalto à mão armada.
Hoje, ele pensa como vai ser sua vida ao retornar às ruas. “Tenho um
filho para criar no mundo lá fora, não quero mais voltar para cá, cara. Vejo a
vida com outros olhos, quero terminar meus estudos e dar oportunidades
diferentes para meu filho. Quero que ele nunca pise aqui na Fundação.”
Quando perguntado sobre o que acha da redução da maioridade penal,
medida que não o afetaria mais, já que é hoje maior de idade, ele é taxativo.
“Vai mudar, mas é para pior.” E justifica: “Porque aqui é um aprendizado, se eu
fosse para uma cadeia ia virar bandido mesmo. Frequentar uma cadeia não tem
volta, morre ou fica pior, mano, é outro mundo. Você vai pra lá e tem menos
possibilidades de voltar para a sociedade.”
Célio (nome fictício) também perdeu sua mãe e seu irmão cedo, tendo sido
criado pela avó. “Nessa época, não tinha condição de ter um tênis ou uma roupa
diferente e me envolvi com o tráfico, aí isso me possibilitava muita coisa que
eu não tinha e via na rua: roupas, tênis, celular, e outras coisas.” Conta que
começou a se envolver com a venda de drogas aos 12 anos. “Eu vendia desde
moleque, já trafiquei bastante, até chegar num ponto que eu comecei a achar que
aquilo era errado e tentar achar um emprego, mas não consegui, aí eu voltei.”
Tinha 15 anos quando acabou detido
por tráfico de drogas, de acordo com ele, injustamente na ocasião. “Na época,
eu tinha saído [do tráfico] e arrumado um emprego
de garçom. Estava trabalhando, mas era conhecido dos policiais, por ter
passagem, aí uma vez teve um B.O. [boletim de ocorrência, gíria
para crime], e eles foram me buscar e colocaram no meu nome. Aí,
como você vai ter moral pra falar com o juiz se teve passagem? É a sua palavra
contra a do policial.” Agora, pretende se qualificar. “Parei de estudar muito
cedo, aqui dentro mesmo tenho lido mais e quero continuar os cursos que fiz
aqui, para ter uma profissão”, relata.
Os dois depoimentos ilustram uma realidade do sistema penal juvenil
bastante similar à que ocorre no sistema prisional adulto no que diz respeito a
quem está privado de liberdade. O recorte socioeconômico é evidente, com uma
maioria de jovens pertencentes a segmentos mais baixos da população. A
socióloga Bruna Gisi Martins de Almeida, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em
Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná, cita em artigo estudo de
Silvana Cercal, que analisou cem processos de adolescentes que estavam em
internação provisória no Centro de Socioeducação de Curitiba (Cense), entre
maio e junho de 2006, constatando que, das 125 ocupações desempenhadas pelos responsáveis
dos jovens, 57,6% representavam uma renda mensal menor que dois salários
mínimos ou não havia qualquer renda fixa.
A falta de estrutura familiar de boa
parte dos internos também salta aos olhos. Levantamento da Fundação Casa
realizado em 2006 apontava que 51% dos internos moravam só com a mãe; 16%, com
o padrasto; 7%, só com o pai e 19%, sem o pai e nem a mãe. Na matéria de Nina
Fideles “De Febem a Fundação Casa”, publicada na edição 109 de Fórum, o pedagogo Carlos (nome fictício), que
trabalha na Fundação, ressalta que não há programa específico da entidade que
preste assistência ao jovem em seu retorno às ruas, e é o suporte familiar que
pode fazer a diferença entre reincidir ou não. “Se o jovem tem uma família, que
lhe preste todo o apoio inicial, ele até consegue se recuperar. Mas, caso não
tenha nada lá fora, provavelmente volta”, analisa.
“Essa opção legislativa pela redução da maioridade tem aspectos muito
ruins como colocar, em um mesmo estabelecimento, um jovem de 16 anos com um
maior de 25, 30 anos. É uma temeridade. O adolescente precisa do contato com a
família e depois com a comunidade. Justamente quando ele tem 14, 15, 16 anos e
inicia esse contato com a comunidade, qual o retorno que a sociedade vai dar
para ele? A prisão?”, questiona o pesquisador Luis Carlos Valois, da
Universidade de São Paulo (USP).
Soluções repressivas como aumento de penas ou redução da maioridade
podem soar bem em momentos de comoção, mas a própria experiência brasileira
aponta que o endurecimento da legislação penal não assegura a diminuição da
violência. A promulgação da Lei de Crimes Hediondos, em 25 de julho de 1990,
por exemplo, não evitou que os índices de criminalidade crescessem, como aponta
um estudo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do
Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), elaborado em 2006. Com a lei,
crimes como estupro, homicídio, sequestro, latrocínio e tráfico foram
considerados hediondos, passando a ser punidos com maior rigor. O estudo chegou
à conclusão de que “é possível afirmar que o endurecimento penal, novamente,
não interferiu na criminalidade registrada, mas concorreu para o agravamento de
um problema bastante sério – a superpopulação prisional”.
Esse cenário de superlotação é evidenciado por números do Sistema de
Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, referentes a
dezembro de 2012. Hoje, a população carcerária do Brasil é de 548 mil pessoas,
mas há somente 310,6 mil vagas no sistema prisional brasileiro, representando
um déficit de 237,4 mil lugares. Entre 1994 e 2009, o número de presídios no
país mais que triplicou, passando de 511 para 1.806, de acordo com o
Departamento Penitenciário Nacional, mas não foi o suficiente para abrigar
todos os condenados, já que, nos últimos 23 anos, a população carcerária do
país cresceu 511%, o que para muitos evidencia uma verdadeira política de
encarceramento que atinge principalmente as classes mais baixas, sem conseguir
frear o aumento da violência. Tal quadro seria agravado ainda mais com a entrada
de jovens no sistema penitenciário comum.
Essa é outra preocupação daqueles que se posicionam contra a redução da
maioridade. A Constituição, em seu artigo 5º, inciso 48, determina que “a pena
será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do
delito, a idade e o sexo do apenado”, mas não é isso que ocorre na prática em
função do déficit de vagas em presídios no Brasil.
“Um cidadão que cometeu um delito como tráfico de drogas não pode estar
na mesma prisão de um latrocida, cujo crime envolve violência. O problema de se
colocar jovens de 16 anos no sistema prisional adulto são as consequências que
isso vai acarretar, tanto para o menor quanto para a sociedade”, acredita
Valois, que também questiona a finalidade de “ressocialização” que o sistema
penitenciário não cumpre. “O termo ‘ressocialização’ nasceu após a
Segunda Guerra Mundial, quando a ONU começou a promover encontros
internacionais e a olhar para os países ocidentais, vendo que tínhamos também
nossos campos de concentração, as prisões. Quando percebeu isso, tentaram
justificar esses campos de concentração em vez de acabar com eles, argumentando
que eles tinham fins de ressocializar”, explica, lembrando de um fato que
exemplifica as condições do cárcere no Brasil e do tratamento que é dado a quem
é preso. “Tiveram quatro presos que estavam sob responsabilidade da Vara de
Execuções Criminais onde eu trabalhava, quatro detentos que morreram queimados
em um incêndio porque estavam algemados às camas. Eram dependentes químicos e
estavam em crise de abstinência.”
“Reduzir a idade penal para lançar adolescentes nos presídios se faz um
equívoco irreparável, porque, no País, se há algo pior do que o chamado
‘sistema Febem’ é o sistema penitenciário”, argumenta Saraiva. De acordo com a
assessoria de imprensa da Fundação Casa, a reincidência caiu de 29%, em
2006, para 13,5%, em 2013. Ainda que alguns ex-internos possam fazer parte das
estatísticas do sistema penitenciário adulto mais tarde, o índice é bem menor
que o verificado entre os presos adultos. Ariel de Castro Alves, advogado
e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), destaca que os índices de reincidência no sistema prisional adulto
chegam a ultrapassar 60%.
ALTERNATIVAS À
REDUÇÃO
Hoje, no Congresso Nacional, tramitam
25 projetos que têm como objetivo reduzir a maioridade penal, e sete deles
teriam condições ir à votação no plenário, mas ainda não entraram na pauta dos
parlamentares. Também há propostas como a do senador Paulo Bauer (PSDB-SC), que
prevê sanções civis para jovens infratores sem redução da idade penal, como a
postergação do início da maioridade civil de 18 para os 21 anos, elevação para
os mesmos 21 da idade mínima para habilitação de condução de veículos e a
suspensão de direitos políticos pelo período em que durar a medida
socioeducativa de internação.
Duas das propostas de emenda
constitucional (PEC) que tramitam no Senado pretendem criar um modelo “híbrido”
de maioridade. Uma, a PEC 74/2011, pretende reduzir de 18 para 15 anos a
maioridade penal nos casos de homicídio doloso e latrocínio. Já a PEC 33/2012
prevê que, a partir dos 16 anos, jovens poderão ser punidos como adultos se
cometerem crimes inafiançáveis ou reincidirem em crimes de lesão corporal grave
ou roubo qualificado. Para Túlio Vianna, trata-se de uma maioridade penal
seletiva, que teria como alvo o adolescente de classe econômica mais baixa.
“Resta saber se essa mesma sociedade que clama hoje pela redução da maioridade
penal vai aceitar amanhã que seus filhos também sejam presos pelas brigas nas
quais se envolverem na saída dos colégios; ou pelos insultos aos professores e
colegas nas redes sociais; ou pelas violações de direitos autorais na internet;
ou pelo uso de drogas; ou por dirigirem sem habilitação. Ou será que a proposta
seria punir apenas os adolescentes pobres?”, questiona, em artigo de O Estado de São Paulo.
“Em quase 90% dos casos, a resposta que o Estado dá é tão ou mais
gravosa que a dada pelo sistema penal aos maiores de 18 anos. O problema
estaria nos delitos graves, para os quais o Estatuto fixa em três anos o limite
da internação sem direito a atividades externas”, pondera Saraiva. Para
ele, é necessário discutir aprimoramentos da legislação, mas tendo como
parâmetro o próprio ECA e as experiências acumuladas durante os 22 anos de sua
vigência. “É possível estabelecer faixas de responsabilização distintas em face
da gravidade do delito, proporcionando mecanismos de defesa social mais
eficientes do que aqueles concebidos em 1990.” Ele cita como exemplo o limite
máximo de privação de liberdade, fixado em três anos, mas que em países
vizinhos como Colômbia e Chile podem chegar a oito e dez anos, respectivamente,
de forma similar ao que ocorre na Alemanha, onde esse período pode alcançar dez
anos.
Para Luís Valois, o debate sobre a
redução da maioridade penal também se relaciona com outras questões. “Boa parte
da sociedade, desde a escola primária, não tem nenhuma formação política, e
nossa capacidade de engajamento tem diminuído dia após dia. Descrente da
atividade política entrega-se a seus instintos e deixa de raciocinar em termos
comunitários, raciocinando somente em termos individuais. E o que sobra? O
egoísmo e a vingança, um instinto não racional”, ponderam. Segundo ele, é
preciso destacar também o papel desempenhado pelo Judiciário no contexto do
discurso repressivo. “Infelizmente, hoje o juiz se vê mais como um justiceiro,
e proporcionar um debate nesse meio [o Judiciário] é
muito difícil, os movimento sociais poderiam propor possibilidades de solução,
mas também estão entorpecidos por essa lógica. Muitas vezes, também clamam por
prisão para determinados crimes, e reforçam, assim, um sistema que é contra
eles mesmos”.
VINGANÇA NÃO É JUSTIÇA
No jornal Folha de São Paulo de 28 de abril, um depoimento
vai de encontro a muito do que se fala a respeito da defesa da redução da
maioridade penal. Luiza Pastor, jornalista de 56 anos, contou um episódio que
viveu quando tinha 19 anos. Estudante da Universidade de São Paulo (USP) à
época, ela foi violentada por um menor de idade e, apesar da terrível
experiência, se posiciona de forma contrária à redução da maioridade penal.
“A única coisa que eu conseguia pensar era que não devia reagir.
Aguentei a humilhação e a violência do estupro, chorando de raiva e vergonha,
mas finalmente tudo acabou e ainda estava viva”, lembrou. Na delegacia, soube
do passado do agressor. “Egresso de várias detenções, tinha o estupro por
atividade predileta, mas sempre se safara. Filho de mãe prostituta e pai
desconhecido, havia sido criado pela avó, uma senhora evangélica que tentara
salvar-lhe a alma à custa de muitas surras. Era óbvio que algo havia dado muito
errado no processo.”
Ao escutar uma “proposta” feita por um policial, que se dispôs a “mandar
logo um tiro” no menor, ela rejeitou a ação. “Ainda me chamaram de covarde, por
discordar de um justiçamento. E insinuaram que, se eu tinha pena dele, era
porque, vai ver, tinha até gostado. Não preciso dizer do alívio que senti ao
embarcar, dois dias depois, para fora deste País.”
Em seu depoimento, ela conta como separou o desejo de vingança daquilo
que idealizava como justiça. “Eu tinha claro que a vítima, ali, era eu. Que, se
tivesse tido ferramenta, oportunidade e sangue frio, eu teria gostado de poder
matar o safado que me violentara – e dormiria tranquila o resto da vida. Mas
tinha mais claro ainda que a vingança que meu sangue pedia não cabia à Justiça,
muito menos àquele que pretendia descontar no criminoso sua própria
impotência.”
“Se os políticos quiserem fazer algo realmente eficaz para combater o
crime na escalada absurda em que vivemos, terão de enfrentar os pedidos de
vingança dos ofendidos da vez e criar um sistema penitenciário que efetivamente
recupere quem pode e deve ser recuperado. Sem isso, qualquer mudança nas leis
será pura e simples vingança. E vingança não é Justiça”, concluiu Luiza.
A TRAGÉDIA E O DIVERSIONISMO
No dia 11 de abril, após o assassinato do jovem Victor Hugo Deppman, o
governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB) anunciava que iria encaminhar ao
Congresso Nacional uma proposta para aumentar o tempo de internação de
adolescentes que cometeram crimes graves. Em 27 de abril, o secretário da
Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira, defendeu uma revisão da
legislação penal por conta da alegada participação de um adolescente (entre
quatro suspeitos, três adultos) no assassinato da dentista Cinthya Magaly
Moutinho de Souza.
Não é a primeira vez que Alckmin propõe um endurecimento da lei
referente a infrações de menores de 18 anos. Em 2003, após o assassinato de um
casal de jovens em Embu-Guaçu, região metropolitana de São Paulo, com a
participação do adolescente conhecido como Champinha (preso até hoje em uma
unidade de internação psiquiátrica), ele fez proposta semelhante. As ocasiões
das duas propostas não soam apenas como oportunismo, mas sim uma reação do
governador àquele que pode ser o seu calcanhar de Aquiles nas eleições de 2014.
Antes favorito absoluto à reeleição, o tucano viu sua popularidade cair
após a onda de violência que recrudesceu no segundo semestre de 2012. “De
acordo com o Datafolha, em setembro, 40% dos eleitores consideravam seu governo
ótimo ou bom e, em novembro, esse índice foi para 29%. Entre aqueles que
apontavam seu governo como ruim ou péssimo, o percentual foi de 17% para 25%.
Em 2013, a capital paulista teve 305 homicídios registrados de janeiro a
março, diante de 258 no mesmo período de 2012, um aumento de 18,2%. Também
cresceram na cidade os casos de estupro: 867, em 2013, e 688 no primeiro
trimestre do ano passado, e o número de roubos e latrocínios, 28.123 casos de
janeiro a março deste ano e 27.570 nos três primeiros meses de 2012.
Pregar contra a legislação penal para menores parece ser a tática diversionista
de Alckmin.
O juiz de Direito
Marcelo Semer, em artigo publicado em seu blogue, dá a chave do que pode ser
uma explicação para o comportamento do governador. “Talvez seja um pouco mais
difícil explicar porque quando os índices de criminalidade baixam, a vitória
deve ser creditada à Administração, mas quando sobem, o problema é da lei.”