domingo, 13 de julho de 2014

MAQUIAVEL - A GÊNESE DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO

Sérgio Sanandaj Mattos
Sociólogo, professor e ex-diretor da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP). É coautor do livro Sociólogos & Sociologia. Historia das suas entidades no Brasil e no mundo. 



Em tempos de crescente desilusão com as instituições políticas e demanda por mais transparência, ética e moralidade na política e, por conseguinte, no poder, revisitemos Maquiavel, ainda que num certo nível de generalidade, para tentar interpretar e compreender os desafios de nossa época.
É difícil não reconhecer a crescente desilusão com as instituições politicas, as inconsistências e alianças partidárias exóticas, os desvios na trajetória representativa, entre outros aspectos, vistos como uma afronta à modernidade e ao ideal liberal. A propósito, na obra o moderno príncipe: Maquiavel revisitado, seu autor, o diplomata e cientista político Paulo Roberto de Almeida, assinala que “(...) A demagogia, já sabemos, é o mais recorrente meio utilizado por aqueles que, carente de outras virtudes administrativas e pessoais, desejam ascender ao principado”. De certo modo, esse cenário nos é peculiar.
Quase cinco séculos depois de redigido, O príncipe (1513), livro escrito pelo filosofo italiano Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli), continua a instigar a reflexão crítica sobre “a política como forma de poder e o poder como resultante da atuação política”. Segundo um dos interpretes de Maquiavel, Claude Lefort, “a imprescindível obra literária de Niccolò di Bernardo Machiavelli, ou simplesmente Nicolau Maquiavel, o pensador de Florença, não de dirige apenas aos homens de seu tempo, está mais viva do que nunca e continua a interpretar a prosperidade” (LEFORT, 1980, p. 11).
O PODER EM PAUTA
O poder é um tema clássico em ciência política desde os antigos filósofos gregos até os clássicos modernos (Maquiavel, Hobbes, Kant, Rousseau, Hegel, Marx) e chega aos contemporâneos (Foucault). Na tradição liberal ou marxista, o tema ocupou estudiosos em todos os tempos. Remontando as principais teorias desde Maquiavel, algumas das principais reflexões sobre esse instigante tema têm suscitado uma extensa discussão filosófica e científica. Na obra Potência, limites e seduções do poder, editada pela UNESP, seu autor Marcos Antonio Nogueira assinala “(...) O poder está em toda parte. Têm muitas faces, múltiplas dimensões e inúmeras falas. Exibe-se e oculta-se com igual dedicação. Ama a exposição e não vive sem o segredo. Podemos odiá-lo, cobiça-lo, combatê-lo ou apenas temê-lo. Justamente por isso, não temos o direito de ignorá-lo e de não tentarmos compreendê-lo. Se assim procedemos, acabaremos por não saber bem o que fazer com o poder que temos e com todos os pequenos e grandes poderes com que interagimos” (NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da Unesp).
Originalmente, a civilização grega procurou interpretar os fenômenos segundo um processo de racionalização, posição esta que a distinguiu de outras civilizações. O estudo das ideias políticas começa naturalmente, com os gregos antigos, pois foram eles, em sentido real, os primeiros a ter ideias politicas. Entre as contribuições do legado grego para as Ciências Sociais, claramente, situam-se Platão, falando da vida social e política na obra Republica e leis, e Aristóteles abordando uma filosofia de cunho social na obra A política.
Segundo Aristóteles, o homem é um ser eminentemente político e social. Está ai afirmada, de modo radical, a sociabilidade natural do homem no mundo antigo. Mas é com Maquiavel, o primeiro grande pensador moderno, que se inaugura a ciência política. Na contemporaneidade, presente em todas as esferas da vida social e política, o poder enquanto categoria analítica, cientificamente, em Sociologia, Antropologia Política e Ciência Política, nos remete a autores e obras que já se tornaram antológicas. Em comum, elas apresentam a inquietação filosófica e política.
Nos séculos XVI e XVII, Nicolau Maquiavel (Niccolò di Bernardo Machiavelli), um dos precursores renascentista do Sociologia, escreveu O príncipe. Foi o primeiro grande pensador moderno e precursor da ciência política. Seguramente no pensamento político clássico de Maquiavel, que é a gênese do pensamento político moderno, a nação de poder aparece quando ele introduz o enfoque do Estado em sua noção corporificada na figura do Príncipe, que é algo histórico, porque Maquiavel está presenciando o nascimento do Estado no século XV. Para Maquiavel (1469-1527), o Estado está surgindo como uma organização de dominação e como expressão máxima da violência. O Estado é um meio de cooptação e coerção que age sobre a sociedade e os indivíduos. A figura do Príncipe é uma forma de corporificação da paz, para que esse conflito seja amenizado, daí a necessidade de instrumentalizar-se o Príncipe. O Príncipe deve governar pela força e pela virtù, que se propõe Maquiavel é no sentido da capacidade e da qualidade para a realização da historia, enquanto força criadora, racionalidade, ação calculada capaz de fazer o homem ser sujeito de sua historia. A perspectiva de Maquiavel aponta nesse sentido que a política não comporta voluntarismo, posto que a ação do homem em Maquiavel é marcada pelo cálculo e pelas circunstâncias que permitem a ação política. Fortuna e virtú são meios e fins da ação política, nos aponta Maquiavel, sendo a virtù a capacidade, qualidade de força social, da realidade de uma razão calculada, e a fortuna, a ocasião concreta para a realização da ação política do homem dotado de virtù. É a circunstância que permite a eficácia da iniciativa política.
O fato é que a visão política de Maquiavel em tal perspectiva  é fundamental quando se discute a problemática do poder porque se percebe através dela a própria divisão de classes, a partir da noção dos poucos e dos grandes, dos amigos e inimigos. O centro maior de seu interesse é o poder formalizado na instituição do Estado, e a noção de sociedade é trabalhada por Maquiavel no sentido de uma capacidade de o homem influir ou participar do Estado.
AMAR OU TEMER
O Príncipe é colocado no plano das paixões entre o ser amado e temido. O desejo de poder é algo que se coloca muitas vezes de modo insaciável, requer certa precauções, como o temor ao desprezo e ao ódio. Por outro lado, Maquiavel, ao colocar a exploração no plano político onde os grandes têm o desejo de dominar e governar, nos remete a uma relação de antagonismo e de complementaridade. Uma boa sociedade em tal perspectiva seria aquela que procura se consolidar e onde o “poder” do Príncipe é algo que emana da própria sociedade.
Maquiavel comporta várias interpretações. Quando coloca a questão da desigualdade histórica discursa como verdadeiro ideólogo das classes emergentes, chamando os homens que sofrem o processo histórico e colocando a virtù enquanto capacidade e força social para esta realização. Maquiavel nos mostra ainda que o Príncipe não deve camuflar a luta de classes. Afinal, Maquiavel descreve um momento histórico em que a luta de classe acontecia às claras, para justificar o poder do Príncipe através das habilidades, da prudência, das alianças e do segredo, de sua política imediata não se tornar pública.

Parece ser verdadeira a reciprocidade entre o pensamento científico e as configurações sociais e políticos da vida, princípio especialmente referendado pela correspondência entre o pensamento de Maquiavel e as condições de existência social e políticas atuais. A política em Maquiavel é redefinida como correlação de forças. O homem faz história. Para fazer historia, os homens têm de se organizar. Para Maquiavel, fazer historia é fazer de modo organizado. Não posso fazer historia de modo aleatório, mas sim com os recursos de que disponho, utilizados de forma racional. “Eu não faço a historia dos meus sonhos. Eu faço a historia possível”. Maquiavel faz apologia da razão do Estado e exalta a força ou vontade de poder (virtù) como primeiro princípio e razão ultima no governo dos povos. A virtù será o meio, a disposição para atingir os fins e para o agir. A fortuna será os fins. A virtù é o meio no qual a ação poderá funcionar com êxito
No tempo de Maquiavel, as desigualdades não eram naturais e sim históricas. As desigualdades vão ver um campo político que vai exigir um esforço, através do jogo de forças. No obra, chama-nos a fazer historia num momento em que a historia tinha por interesse a unificação da Itália. Neste momento, fazer historia, fazer política seria como que uma mercadoria capaz de circular no nível econômico. Maquiavel não representa no seu discurso o interesse burguês. Assumir isto é um jogo perigoso. O discurso de Maquiavel serve aos interesses de qualquer classe social emergente. Segundo Kant, até Marx, quando clamou “Operário de todo o mundo, uni-vos”, fez o mesmo discurso de Maquiavel, num outro momento da história, servindo ao proletariado emergente e organizado. Para Maquiavel, quem quer fazer historia e participar da historia deve se organizar e ter a virtù, senão vai ficar de fora da historia. Isso, em Maquiavel, se faz presente até na obra do sociólogo americano Wright Mills, em seu livro A imaginação sociológica, quando diz que os “indivíduos não devem ser objetos da historia, mas sim agentes capazes de fazer a historia”.  Propões Maquiavel em seu discurso para o estadista um virtù que se distancia da fantasia e do sonho. Política não se faz só com boas intenções, mas também com a força da inteligência.
Na sua modernização da necessidade, Maquiavel de certo modo condena os passivos e os que agitam sem se situarem no contexto. Nós não fazemos historia quando cruzamos os braços, nem quando caminhamos sem um plano, sem um rumo. É necessário perceber o caminho, conhecer o terreno em que se pisa, para evitar erros. Pressupõe Maquiavel, no dramático do poder e na correlação de forças, que somos marcados por interesses diversos. A vontade seria o sentido eficaz. Nesse sentido, quem quer fazer política num campo minado por interesse tão divergente vai ter de operar. E os que querem a unificação terão de usar a força. É a partir daí que vem a política enquanto correlação de forças.
Maquiavel está querendo assessorar não sobre os sonhos, não sobre o passado, mas sim para tornar o cálculo o mais exato possível. Isto é uma modernização da moralidade em Maquiavel. Para ele que eu pense o que quiser subjetivamente calcule a minha ação num sentido eficaz. Como exemplo podemos citar: que o infrator tenha medo da lei. Ele nos propõe fazermos política com força, mas articulada com a razão. Força no sentido de fazer a própria historia. É um apelo à razão, visto que toda política visa implantar uma nova ordem, e os que tem mais força conseguem implantar essa ordem.
A literatura de Maquiavel nos remete a pensar na arte de governar. Possibilita a análise das bases do poder político. Redefine as virtudes. Apresenta o conceito de virtù enquanto força criadora, racionalidade, ação calculada e qualidade do homem de ação que o capacita a realizar sua historia. Finalmente, sem querer abreviar, é difícil não reconhecer eu, discutindo a natureza do homem, da sociedade e do poder, Maquiavel introduz a historia no pensamento político, revolucionando a ciência e colocando a historia como um paradigma.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, P. R. de. O moderno Príncipe: Maquiavel revisitado. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, v. 147.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
LEBRUN, G. O que é poder? São Paulo: Brasiliense-Abril Cultural, 1984 (Primeiros Passos, 24).
LEFORT, C. A primeira figura da filosofia da práxis. Uma interpretação de Antonio Gramsci. In: QUIRINI, C. G.; SOUZA, M. T. S. R. de (Orgs.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
MACHIAVELLI, Niccolò (1469-1527). O príncipe, escritos políticos. Tradução Lívio Xavier. 2ª. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores).
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Editora Escala, (Grandes Obras do Pensamento Universal,12).

NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da Unesp.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

AS TRAQUINAGENS DA MODERNIDADE NA RELIGIÃO


Aron Édson Nogueira Barbosa

Bacharel (Antropologia), licenciado em Ciências Sociais e Mestrado em Ciências da Religião pela Universidade de Juiz de Fora. arongifoni@hotmail.com

Na sociedade moderna, de forma geral, nos deparamos por um crescente surgimento de novas religiões e denominações. Atrelado diretamente a isso está também o fluxo corrente de pessoas entre essas novas religiões. De acordo com as observações feitas durante o período de pesquisa, verificamos que a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) é uma das muitas igrejas que estão nesse caminho por onde as pessoas passam. Essa igreja surge da cissiparidade com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), resultado de um possível conflito entre Valdomiro Santiago (fundador da IMPD) e Edir Macedo (fundador da IURD).
 

Essas igrejas possuem traços que são comuns a todas as igrejas neopentecostais, sendo mais visada pela população e mais divulgada pelas igrejas a tríade cura/exorcismo/prosperidade. No caso da IMPD, existe uma ênfase na cura divina. Programas de TV e de rádio, jornal e livros enfatizam os testemunhos dos fiéis que foram curados após receberem a oração de Valdomiro Santiago e de seus pastores.
O exorcismo te uma importância fundamental no neopentecostalismo. Ele é o responsável pela libertação das pessoas daquilo que lhes causa mal, e também é a chave para que as portas da prosperidade sejam abertas. Ou seja, se as pessoas têm doenças, estão desempregadas, desmotivadas, têm dependência química, é porque, possivelmente, estão possuídas pelo demônio. Todos os males biológicos, psicológicos, sociais, entre outros, são causados pelas forças do mal, por aquele que adoram o demônio e não têm uma vida regrada nos ensinamentos de Deus e da Igreja. Essa ideia vem acompanhando a evolução do cristianismo ao longo dos anos. O demônio existe, é causador do mal, qualquer pessoa está sujeita às suas ações, e se a pessoa não consegue nada próspero na sua vida, é por causa dele.
LIBERTAÇÃO DO MAL
Na IMPD, o exorcismo é tratado de forma diferente, e é chamado de “libertação”, assim como na Renovação Carismática Católica. A Libertação pode ser individual ou coletiva. A forma individual se dá por meio de orações entre o pastor e o fiel. O pastor profere máximas, pedindo a Deus que afaste todos os males da vida daquele fiel. Entre eles maldição e macumbaria. A libertação coletiva acontece nos cultos dedicados à cura divina, e o pastor ou bispo ora por todos que estão ali. O dirigente do culto chama à frente as pessoas que desejam algum milagre, faz um momento de oração pedindo a Deus que intervenha na vida daquelas pessoas, e logo depois inicia o ritual de libertação.

De acordo com Almeida (1982), as religiões neopentecostais, de forma geral tendem a demonizar elementos das religiões afro-brasileira¹ e espíritas. Durante as décadas de 1970 e 1980, as denominações pentecostais ganhara maior visibilidade no campo religioso brasileiro, e como estas tinham grande ênfase na batalha espiritual contra as outras denominações religiosas, as afro-brasileiras e espiritas se tornaram os inimigos número 1 das igrejas neopentecostais. A libertação (ou exorcismo) e peça central da dinâmica dos cultos, uma vez que os males da vida encontram sua origem em Satanás e seus demônios, que estão travestidos pelos exus e pelos espíritos. O desemprego, a miséria, a crise familiar são, quase sempre, de origem maligna. O exorcismo, sob intervenção do pastor, expele as forças satânicas do corpo do crente restituindo a saúde mental e corporal. A IMPD não tem um discurso claro que atribua exus e entidades à ação demoníaca. Contudo, fala-se em trabalhos de macumbaria no momento das orações individuais e coletivas.
As igrejas neopentecostais dão uma identidade ao diabo, retirando-o da subjetividade do universo pentecostal e colocando-o em um plano objetivo. Assim, o diabo se faz presente não só na pessoa, como também no ambiente, e todos podem vê-lo, pois o possuído deixa de agir por conta própria e passa a ser controlada pelo diabo. De certa forma, podemos dizer que o diabo é peça-chave para a existência do neopentecostalismo. Uma vez que a sua proposta é o combate sistêmico a Satanás e seus demônios, ele próprio não existiria sem a presença dos demônios na vida das pessoas.
CURA DIVINA
O fiel que quer receber a cura divina precisa se submeter a um ritual de libertação, que é o exorcismo descrito acima. A partir dessa libertação, o fiel está pronto para que Deus opere nele um milagre. De acordo com Csordas (2008), a cura pode ser dividida em três aspectos principais: o procedimento, o processo e a conclusão.
O procedimento diz respeito aos sujeitos envolvidos no ritual da cura e os objetos ou oração ou até medicamentos que são usados. Portanto, o procedimento do ritual de cura na IMPD envolve a ação sacra dos pastores (ou demais partícipes hierarquizados da igreja), que invocam a ação divina para que os demônios que residem em cada pessoa que está ali para ser curada possam ser expulsos; para isso, utilizam de orações e dizeres espontâneos parecidos com o ritual de exorcismo iurdiano, e também utilizam-se de toque com as mãos na cabeça das pessoas, simulando um gesto que se caracteriza pela retirada de alguma coisa da cabeça dos fiéis. A partir daí, algumas pessoas alteram o seu estado de consciência, o que caracteriza que o demônio esta se manifestando nela; algumas pessoas desmaiam, outras gritam e conversam de modo agressivo com os pastores, e como outras nada acontece.

O segundo aspecto do ritual de cura é o processo. Entendemos essa característica como sendo o estado da pessoa, seja ele físico ou psicológico, durante o ritual. O que ocorre, na verdade, é um misto de emoções que vão de um simples lacrimejar de olhos até os gritos mais desesperados de dor e sofrimento. Quando o ritual de libertação acaba, podemos perceber nas pessoas um semblante calmo, tranquilo, totalmente diferente das manifestações agitadas que acabaram de acontecer ali. Me parece, à primeira vista, uma espécie de transe coletivo, que se encerra ao comando do dirigente do culto, quando convida todos os presentes a soltarem um grito bem alto, caracterizando, de fato, que a ordem é para que o demônio saia das pessoas. Os gritos diziam: Sai... Sai... Sai.
O terceiro aspecto, que é a conclusão, é para nós o mais importante. Esse aspecto diz respeito à disposição final dos participantes em relação ao seu nível declarado de satisfação com a cura, ou seja, é o momento e, que o fiel se manifesta em relação ao seu objetivo em estar ali, vai declarar (ou não) se recebeu a cura de Deus, se alguma dor ou doença que ele sentia foi sanada a partir da intervenção divina.  Quando acaba o final do ritual de libertação, o pastor convida as pessoas que quiserem a dar o seu testemunho de fé, que nada mais é do que o discurso dos crentes que receberam o milagre. Varias pessoas se voluntariam, sendo que algumas delas receberam a cura naquela hora, e outras receberam em outros momentos, como em orações pelo rádio e televisão. Nessa hora, as pessoas se manifestam em relação à dor que estavam sentindo e que não sentem mais, àquela doença que se extinguiu sem explicações médicas, o emprego que não aparecia e que agora foi conseguido, enfim, muitas outras necessidades que os crentes buscavam através de Deus e que, quando conseguem, atribuem à ação divina.
RITUAL SAGRADO
O que nos interessa aqui não são explicações comprovadas cientificamente acerca dos milagres. O que importa para nós é a eficácia simbólica da cura, e o que ela representa para o fiel. De acordo com Lévi-Strauss (1975), “a cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espirito das dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente acredita nela, e ela é membros de uma sociedade que acredita. Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos fazem partes de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em duvida. O que ela não aceita são as dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, pelo apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se apoiam mutuamente”.

Não estamos tratando aqui de um ritual indígena. Portanto, podemos transpor para o universo em estudo a estrutura do texto acima, transformando a em figura do xamã no pastor, a concepção indígena do universo em teologia neopentecostal e todos os demais traços míticos de monstros e espíritos e demônios. Dessa forma, podemos dizer que a cura depende, exclusivamente, de quem a procura. Ou seja, não adianta querer a intervenção divina se não se aceita a mesma, ou não acredita no que será feito. O ritual de cura, atrelado diretamente à libertação, faz parte do universo religioso da IMPD e reúne os fiéis numa igual perspectiva de crença, o que facilita a conclusão positiva do milagre.
Dessa forma, podemos dizer que a cura acontece a partir do emaranhado de significados que são colocados na vida do crente, e para tal ele deve acreditar no ritual, na possessão por demônios e no exorcismo deles, como forma de libertação, de limpeza do organismo para que aconteça a ação de Deus.
O ultimo tópico da tríade – que é a prosperidade – deve ser visto como um ato conclusivo. Ou seja, o crente busca a cura, busca uma melhora porque quer que sua vida seja próspera. A teologia da prosperidade é propaganda de forma intensa no universo neopentecostal. A IMPD, por exemplo, possui cultos exclusivamente voltados para a prosperidade. São eles: Segunda-Feira do Crescimento Financeiro e o Sábado de Clamor das Portas Abertas.
RELIGIÃO E MODERNIDADE
Juntando esses três aspectos, podemos dizer que eles estão intrinsecamente ligados. O crente quer a cura de Deus; para isso, ele deve primeiro se libertar daquilo que o prende, e assim se submeter à libertação; após ter sido liberto, Deus opera nele um milagre, seja ele a cura de alguma doença, ou contra benesse que ele almeje. Dessa forma, Deus ajuda o fiel, para que ele possa ter uma vida próspera, como mandam as escrituras.

Na verdade, as pessoas estão em busca do que lhe é conveniente e eficaz. Nesses casos, as pessoas buscam soluções divinas para os seus problemas, e a maioria dos entrevistados encontrou essa solução na IMPD. A cura divina, ou a solução divina para os problemas, faz com que as pessoas transitem mesmo de uma igreja para outra, até encontrarem o que de fato almejam. De certa forma, o pentecostalismo resgata a ideia de cura divina, pois a Igreja Católica tratou de delegar a cura apenas aos santos canonizados pelo Vaticano. O pentecostalismo, não é necessário ser santo para “praticar” milagres.
De acordo com Hervieu-Leger (2008), existem paradoxo religioso nas sociedades seculares. O que seria esse paradoxo? A modernidade, ao mesmo tempo em que seculariza a religião, deixando-a completamente sem prestígio e sem status para controlar as coisas mundanas – como era feito nos séculos anteriores -, cria determinadas vias de acesso para que essa mesma religião recrie novas formas de religiosidade. Isso significa que a religião, de certa forma, esfacela-se em tradições. E o avanço das igrejas neopentecostais pode ser atrelado a isso.
A modernidade, de acordo com Giddens (2005), nos passa a ideia de que o mundo não é regido mais pelo progresso ou pela historia de grandes instituições. A sociedade pós-moderna é totalmente pluralista e diversificada, e seu histórico é formado não pelos ditames das coisas antigas, e sim pelo seu próprio desenvolvimento, unindo as características e oportunidades que são oferecidas. De certa forma, houve uma ruptura com a tradição, e, após isso, a própria modernidade recria canais de formação de novas crenças, e é esse o cenário do avanço neopentecostal. Existem igrejas que são determinadas a um tipo de publico, como as surgidas dentro de presídios e as recentes igrejas voltadas para fiéis homossexuais. Nunca que em tempos anteriores isso seria possível, dadas as circunstâncias da hegemonia Católica Apostólica.

As práticas religiosas se misturam e permitem que os frequentadores façam essa mistura também. Há pessoas que vão em uma missa e depois vão para uma sessão espirita ou para algum terreiro. A este ponto cabem algumas considerações: i) a busca pela eficiência dos bens religiosos faz com que exista esse trânsito, e este, por sua vez, pode ser fixo ou não, possibilitando ao fiel que continue trafegando à procura de respostas positivas ou que ele se fixe em alguma igreja; a visão de religião das pessoas está bem alterada também, pois é inaceitável para a Igreja Católica pregar que ele é a única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Contudo, os fiéis não tem essa visão e continuam buscando resultados.
De acordo com Hervieu-Leger (apud MARTELLI, 1995), esses efeitos da modernidade foram combatidos pelo Vaticano sob a liderança carismática de João Paulo II. Foi traçada uma estratégia mais complexa do que a enorme crítica que fazia a Igreja Católica se por à modernidade. A crítica passa a ser em favor dos direitos do homem, e não mais em favor do tradicionalismo. O resultado foi previsível: a estratégia encontra limites insuperáveis e certamente vai falir. Essa foi a conclusão que Hervieu-Leger chegou em sua análise, e esta se consumou. A estratégia católica não deu certo, a mesma perde o espaço hegemônico que tinha para os neopentecostais. O censo de 2000 já mostrava que o número de católicos vinha diminuindo consideravelmente, concomitante ao crescimento de neopentecostais e dos sem religião, e o censo 2010 consuma esse abismo nos números.
Ainda, segundo Pace (1999), a religião é influenciada pelos efeitos da globalização. De acordo com o autor, a globalização é um processo de decomposição e recomposição da identidade individual e coletiva que fragiliza os limites simbólicos dos sistemas de crença e pertencimento. Observando a religião a partir desse ponto de vista, ela este em crise como fonte de imagem, estáveis e distribuídas no tempo, do mundo em que uma autoridade religiosa reconhecida enquanto tal entrega de geração em geração os mecanismos de reprodução do capital simbólico, que são protegidos por uma religião graças ao trabalho incessante de seus pensadores.
Ao falar de globalização, Pace (1999) faz um confronto entre religião e a modernização das sociedades. Essa modernização reflete no interior da religião e faz com que ela modifique seu discurso, amenize suas assertivas e passe a fazer uma comunicação mais simples com o objetivo de conquistar um público maior, que desconhece a teologia e que está mais preocupado com as questões relacionadas com o dia a dia.

Em suma, os efeitos da pós-modernidade (ou globalização) atuam na expansão do neopentecostalismo, e em especial na IMPD, que é uma produtora de bens religiosos diversos, uma espécie de empresa, que tem sua clientela própria. E como é próprio de qualquer empresa, não é possível fidelizar os seus clientes.
As novas igrejas que são criadas a todo momento produzem o que chamamos de trânsito religioso, que é essa “andança” dos fiéis entre mais de uma igreja ou religião, em busca de determinados bens religiosos. Os autores pesquisados julgam como trânsito religioso o tráfego de fiéis em todas as religiões de forma geral. No entanto, o entendimento desse trânsito religioso não deve ser tão generalizado. O universo neopentecostal é, de certa forma, comum a todas as igrejas que se enquadram no mesmo segmento. Se o fiel trafega por igrejas dentro de um mesmo universo, esse trânsito se limita a ser apenas institucional ou interdenomininacional, e não inter-religioso.
TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
No contexto dos últimos 50 anos, a intensa urbanização e industrialização marcaram o período do desenvolvimento nacional. Surge então uma proposta religiosa baseada no tráfego de bens simbólicos, que trouxe para si os segmentos mais pobres da sociedade brasileira, e a partir destas foram criadas redes de símbolos que fazem sentidos a essas camadas e que lhes dessem dignidade. De acordo com Proença (2010), as mudanças estruturais por quais o Brasil passou instigaram o aparecimento de determinadas práticas religiosas que respondiam bem aos processos de modernização que a sociedade brasileira passava. As pessoas foram atraídas pelas propostas que essas novas práticas colocavam como propostas ao mundo de crises que viviam. O neopentecostalismo surge com propostas de soluções mais instantâneas e medidas por elementos sobrenaturais. Esse segmento ficou conhecido no meio pentecostal por Teologia da Prosperidade.


Entre os principais ensinamentos desse segmento estão a vontade de Deus que seus filhos comam do bom e do melhor, que vistam as melhores roupas e tenham tudo o que é melhor; não se deve gastar dinheiro com médicos e remédios, pois a  fé é suficiente para a cura de todas as doenças. O neopentecostalismo abandona ema ética da desvalorização do mundo voltada para objetivos extramundanos e passa a trabalhar com a ideia de aceitação que é natural ser rico, ter uma saúde boa e ser prospero. A figura do diabo aparece novamente aqui, pois é atribuída a ação demoníaca toda a responsabilidade pela miséria e sofrimento.
REFERÊNCIAS
BITUN, Ricardo. Campo religioso neopentecostal: Igreja Mundial do poder de Deus e o trânsito religioso. [S. I.] Revista Pandora Brasil, n. 25, 2010.
BITUN, Ricardo. A “remasterizarão” do movimento pentecostal da Igreja Mundial do Poder d Deus. Ciberteologia, ano III, n. 23.
BITUN, Ricardo. Igreja Mundial do Poder de Deus: rupturas e continuidade no movimento pentecostal. Estudos de Religião, v. 23, n. 36, p. 61-79, 2009.
CAMURÇA, Marcelo. A sociologia da religião de Daniele Hervieu-Leger: entre a memória e a emoção. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003. 
CSORDAS, Thomas J. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.
FILHO, José Bittencourt. Remédio Amargo. In: ANTONIAZZI, Alberto et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FRESTON, Paul. Breve historia de pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI, Alberto et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
HERVIEU-LÉGER, Daniele. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa. In. Idem. O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 31-56,2008. 
HERVIEU-LÉGER, Daniele. Representam os surtos emocionais contemporâneos e o fim da secularização ou o fim da religião. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 1, p. 31-47, 1997.
LEVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira: católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Civitas, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 238-258, 2011.
MARTELLI, Stefano. Cenários da religião na sociedade pós-moderna. In: Idem. A religião na sociedade pós moderna. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 452-468.
MENDOÇA, Antonio Gouveia. O celeste porvir: a isenção do pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
MENDOÇA, Antonio Gouveia. O pentecostalismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista USP, São Paulo, n. 67, p. 48-67, 2005.
OLIVA, Alfredo dos Santos; BENATTE, Antonio Paulo (Orgs.). 100 anos de Pentecostes: capítulo da historia do pentecostalismo no Brasil. São Paulo: fonte Editorial, 2010.
PACE, Enzo. Religião e Globalização. In: ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (Orgs.) Globalização e Religião. Petrópolis: Vozes, p. 25-42, 1999.

PROENÇA, Wender de Lara. Da ascese aos bens do mundo ao anseio por um mundo de bens: representações de pobreza e da riqueza práticas do pentecostalismo. In: 100 anos de Pentecostes: capítulo da historia do pentecostalismo no Brasil. São Paulo: fonte Editorial, 2010.

Texto retirado da REVISTA SOCIOLOGIA ANO IV – EDIÇÃO 43 – OUTUBRO/NOVEMBRO 2012

O SURGIMENTO DOS HOMOSSEXUAIS

Por Alexey Dodsworth – Magnativa ¹



Mesmo que você não seja um homossexual, quase com certeza conhece ou convive com um. E, independentemente de qual seja a sua postura diante dessa pessoa, você provavelmente já parou para pensar: “por que existem homossexuais?” Ou, se você mesmo tiver desejos homoeróticos, já deve ter se apercebido imerso no pensamento especulativo “Por que sou assim?”. Resposta e argumento não faltam, desde os mais esotéricos até científicos. Tais argumentos nada satisfatórios para o filósofo francês Michael Foucault (1926 – 1984). Para ele, tudo o que se diz sobre as supostas causas da homossexualidade é de uma simplicidade ingênua. Sobre isso, Foucault levanta importantes questões: o que está por trás desta incessante por uma explicação? A maior parte de seus questionamentos sobre o tema se encontra em Ditos e Escritos e em A Historia da Sexualidade.
Foucault é eventualmente mal compreendido e, em geral, os erros de leitura em relação à sua obra decorrem de recortes malfeitos daquilo que ele efetivamente disse. Um dos pontos em que se instaura a má compreensão está na crítica que o filosofo faz em relação a alguns pontos dos movimentos de liberação gay. O que ele critica não  é a afirmação do desejo homoerótico, o que seria estranho, posto que ele mesmo tinha orientação homossexual. O perigoso, segundo Foucault, é a afirmação deste desejo a partir de argumentos biológicos e naturalistas, ou seja, a conversão de desejo e identidade biologicamente determinada.
Em uma entrevista realizada em Toronto, em 1982, Foucault diz: “O que eu quis dizer é que, na minha opinião, o movimento homossexual hoje precisa mais de uma arte de viver do que uma Ciência ou de um conhecimento científico (ou pseudocientífico) daquilo que é a sexualidade”. Em síntese: segundo Foucault, muitos homossexuais estão por demais paralisados na busca continua por algo que explique a causa de seus desejos, no lugar de viverem estes desejos.
BIOLOGISMO HOMOSSEXUAL



O posicionamento cauteloso das causas da homossexualidade irrita principalmente algumas correntes, que preferem o determinismo biológico como uma forma de convencer que homossexualidade é natural e, por conseguinte, deve ser aceita. Que a homossexualidade é natural isso deveria ser evidente, pois o que não falta na natureza são exemplos de relações homossexuais entre animais. Além disso, o argumento que contesta a homossexualidade a partir da natureza é falho pois, se fôssemos seguir firmemente o que é natural, não forçaríamos a existência da monogamia e, convenhamos, sequer vestiríamos roupas.
O que alguns militantes não percebem é que a defesa do desejo  homossexual como uma identidade biologicamente determinada pode ser combustível perfeito justamente para os homofóbicos. Afinal, se provamos que o desejo homossexual é fruto de singularidade física, tudo isso poderia ser tratado por terapêuticas, do mesmo modo que corrigimos a miopia ou outra singularidade fisiológica incômoda. Foucault, mais de uma vez, apontou para o fato de que a vida é uma escolha entre perigos. Não existe um “caminho ideal”, mas sim riscos mais ou menos administráveis. Apostar num determinismo biológico que, por si só, seja fundamento para o desejo homoerótico é um perigo, pois não implica necessariamente em aceitação – os homofóbicos podem argumentar que tal condição seria uma doença, uma aberração medicamente tratável.
Foucault critica, em primeiro lugar, a falácia de causa única, seja ela qual for, física ou psicológica; em segundo lugar, os perigos decorrentes da abordagem da homossexualidade como uma doença biológica passível de tratamento. Neste sentido, podemos observar ao menos uma interseção entre Foucault e Sigmund Freud (1856 – 1939), não obstante as discordâncias em outras esferas. Freud também era contrario à ideia de causa única, muito embora se pense – equivocadamente – que o pai da psicanalise tentava explicar a homossexualidade a partir do problema de um pai ausente e uma mãe dominadora, sempre. A leitura dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, publicado pela primeira vez em 1908, mostra o que Freud efetivamente disse:
“Nem a hipótese de que a inversão é inata, nem tampouco a conjectura alternativa de que é adquirida explicam sua natureza. No primeiro caso, é preciso dizer o que há nela de inato, para que não se esconde com a explicação rudimentar de que a pessoa traz consigo, em caráter inato, o vinculo da pulsão sexual com determinado objeto sexual. No outro caso, cabe perguntar se as múltiplas influencias acidentais bastariam para explicar a aquisição da inversão, sem necessidade de que algo no indivíduo fosse ao encontro delas. A negação deste ultimo fator, segundo nossas colocações anteriores, é inadmissível."
Está muito claro que, para Freud, é insatisfatório definir uma única causa para a existência de pessoas que desejam o mesmo sexo. Como se vê, Freud ainda estava preocupado com a questão da causa, muito embora deixasse claro, ao longo de suas pesquisas, que provavelmente dois homossexuais não desejam o mesmo sexo pelas mesmas razões.
A CIÊNCIA A SERVIÇO DE IDEOLOGIAS POLITICAS
A investigação histórica deixa claro o quanto alguns discursos científicos se encontram atrelados a ideologias especificas, inviabilizando uma suposta pureza e tornando a Ciência um instrumento a serviço de grupos particulares. Nestes casos, não haveria uma relação exuberante entre Ciência e ideologia; haveria, isso sim, uma retroalimentação. Se é possível uma ciência de fato pura e isenta de ideologias, isso é assunto para uma discussão – e outro artigo.
No que tange aos homossexuais, só o fato de nos referirmos a um desejo (gostar do mesmo sexo) como uma identidade (“ser” algo) já conduz a interpretação equivocada, a partir das quais se infere que existem comportamentos comuns, características de personalidade, destinos específicos ligados a uma “essência homossexual”. Seja na forma de critica (“homossexuais são mais promíscuos e traem mais”), seja na forma de elogios (“homossexuais são mais sensíveis e inteligentes do que heterossexuais”) vejo o que está implicado neste discurso: a ideia de uma essência inata, a ideia de uma especificidade biologicamente determinada que torna todos as desejantes do mesmo sexo como fazendo parte de um subconjunto modelar. Até mesmo entre alguns grupos de militantes gays contemporâneos, o mais importante parece ser a afirmação de uma identidade (“eu sou gay”) do que as implicações do desejo (“o que eu desejo? Como posso experimentar a vida a partir dos meus desejos?”) e assim, deixam – se de buscar as diferenças que singularizam (“no que eu, gay, defiro dos outros gays?”). Evoca-se que as pessoas “saiam dos armários” como uma obrigatoriedade ideológica. O homem homossexual que “não se declara” é tido como covarde e mentiroso, pois o desejo deve ser tornado público e posto a serviço de uma ideologia.
Nas situações confessionais (desde a confissão sacerdotal até a Psicanálise) o sujeito desejante produz u discurso sobre sua própria sexualidade, que será consequentemente interpretado por um “sujeito suposto saber”, uma autoridade. Ocorre que, para Foucault, a verdade revelada neste processo não se trata de uma descoberta, e sim de uma produção. Trata-se de um espaço de veridição, ou seja, de construção de um discurso que estará vinculado a uma ideologia e a interesses que estão além do sujeito e dissolvendo toda a sua singularidade num conjunto de universais que ajustam as pessoas a um todo que confirma – e na verdade constrói – uma identidade.
O SURGIMENTO DO HOMOSSEXUAL
Um dos pontos mais provocativos da obra de Foucault está em suas afirmações de que “o homossexual” enquanto categoria tem data de nascimento: 1870, com o artigo de Carl Westphal (1833 – 1890), As Sensações Sexuais Contrarias. Aqui, é importante salientar o que Foucault não disse, a fim de dirimir eventuais mal entendido: ao dizer que o “homossexual” tem data de nascimento, isto não significa que homens não faziam sexo com homens antes de 1870. A diferença fundamental é que, a partir do século XIX, o discurso vigente falava a respeito de “uma espécie”, “uma categoria” de criaturas a quem chamamos de “o homossexual”. Antes de 1870 havia a recriminação contra atos homossexuais, mas supostamente não se aventava que existisse algo como o homossexual substantivado. Um individuo que praticasse o coito homoerótico não era rotulado como pertencente a uma subclasse especifica da humanidade, e bastava a ele que – após o ato confessional – se redimisse a partir de algumas práticas que o “purificariam” do ato. O sujeito não era algo, ele tinha feito algo. O investimento das instituições de poder vigente (a igreja, mais especificamente) nesta direção se limitava a prescrever orações como forma de redenção contra o ato dito “pecaminoso” (embora nos séculos XVI e XVII muitos tenham sido mortos pela Inquisição, por conta de práticas homossexuais). A partir de 1870 ocorre uma mudança de paradigma, nasce o conceito de “o homossexual”, uma entidade singular essencialmente determinada, alguém com uma diferenciação de desejo que abarcava toda a inteireza de seu ser.

Quando Foucault afirma que “o homossexual” é construído, ele não esta afirmando que as pessoas se ornam homossexuais por conta de influencias ambientais. O fato é que se descobrir desejando o mesmo sexo a partir da década de 1870 passou a ter uma implicação diferenciada: o sujeito não estava apenas tendo desejo, mas ele se descobria parte de um subconjunto da humanidade. Esta marca, este estigma recai sobre o sujeito como um ferro de marcar gado. Afinal, ele pertencia a uma classe que havia se tornado alvo de estudos científicos. Não era ele quem dizia de si, de seu desejo, e sim as autoridades.
O começo do século XX foi marcado pelo surgimento de diversas “tecnologia do sexo” e “ciências da sexualidade”, que se encontrava assaz comprometida com o objeto do preservar e promover a força laboral produtiva e propiciadora, servidora de um sistema capitalista em desenvolvimento cujo centro fundamental era a família burguesa. Deste modo, homossexuais evidentemente incomodavam por constituírem uma anomalia no sistema que exigia a procriação. O homossexual foi transformado numa “espécie” ameaçadora de máquina – como se uma minoria que não se reproduz ao praticar sexo fosse realmente induzir a humanidade à extinção!
Com a psiquiatrização da homossexualidade no fim do século XIX, surgiu o pensamento equivocado de que tudo no homossexual se resume ao sexo, ele está imerso em sua própria sexualidade, deste modo, as identidades são construídas a partir desta crença. Tudo se resume a este pequeno detalhe. Conforme diz Foucault:
“O homossexual do século XIX torna-se um personagem: um passado, uma historia, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o principio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém como natureza singular.”
Foucault não nega eventuais indícios biológicos para as preferencias sexuais. Ele jamais afirma que não existe um fator biológico; o que ele rejeita é a militância pautada e justificada na Biologia. A questão é: a que serve este conhecimento? Com qual ideologia ela está implicada? São perguntas que não permitem uma atitude ingênua.
No inicio dos anos 1980 e até sua morte, Foucault irá declarar – em mais uma ocasião – que a grande questão não é descobrir-se gay, e sim tornar-se gay. Este é outro posicionamento mal compreendido em seu discurso. Ele não está dizendo que todos deveriam ser homossexuais, até que por que para Foucault, “homossexual” e “gay” não são sinônimos. É preciso, neste ponto do texto, diferenciar o termo “gay” de “homossexual” pois, apesar de aparentarem relação sinônimas, possuem uma notável diferenciação histórica.
HOMOSSEXUAL VERSUS GAY
“Homossexual”, conforme já vimos, é um termo que surge no contexto do final do século XIX, e ilustra uma suposta categoria de individuo portadores de uma doença misteriosa. A construção conceitual “colou” com tamanha força que apenas no final do século XX a homossexualidade foi retirada do rol de distúrbios listados pelo Catálogo Internacional de Doenças. Até a década de 1960, “homossexual” foi o termo utilizado, carregado de implicações médicas, legais, psicológicas.
Mas, nos anos 1960, paulatinamente alguns homens e mulheres passaram a se referir a si mesmo como gays, do inglês “alegre”, o que provocou consternação em muitas pessoas de sexualidade dita “normal”, uma vez que um vocábulo comum tinha sido “sequestrado” por um assim dito “grupo pervertido”. A diferença mais substancial entre os termos “gay” e “homossexual” está no fato de que, enquanto a categoria “homossexual” era um objeto de conhecimento das biociências, os gays eram um grupo específico que afirmava ostensivamente um posicionamento político. Um grupo que lutava por seus direitos, pela descriminalização, um grupo que que lutava em prol do respeito às diferenças. “Ser gay”, portanto, seria questão de orgulho, e não de patologia. Seria uma postura de resistência contra as normatividades, uma resistência na qual o sujeito, dizendo-se gay, está a dizer: sou feliz desejando o que desejo, e não me sinto mal por isso.  Do mesmo modo que os movimentos feministas conquistaram espaço para as mulheres ao longo dos mesmos anos 1960, os movimentos gays se negaram a assumir para si a representação de sujeitos portadores de uma patologia. A partir desde ponto de vista, nem toda pessoa que deseja o próprio sexo é gay. Ela é alguém que deseja o próprio sexo, e apenas isso: um homossexual. Mas ser gay é uma conquista pessoal, é assumir uma postura política, é lutar por um mundo em que as diferenças são respeitadas. Para Foucault , nem todo homossexual é gay, e não será enquanto permanecer paralisado em um sentimentos de culpa e submisso a um discurso patológico.
Ao longo de Ditos e Escritos, Foucault aponta para o fato de que é preciso procurar ser gay, ou seja, assumir uma postura ativista, militante, que luta por um lugar ao sol. Mais do que simplesmente copiar os modelos heteronormativos, “ser gay”, segundo Foucault é se aproveitar de suas diferenças a fim de criar novas formas de relação, inventar novos estilos de vida. “Ser gay” não se resumiria, portanto, a batalha por uma inserção no estado vigente. O filosofo, em momento algum, pretende limitar sua abordagem à conquista de direitos existentes, como o direito ao casamento entre homossexuais, mas como um militância sem fim, que vai além do que existe atualmente. Sobre a questão do casamento gay, por exemplo, Foucault reconhece que tal conquista é importante, mas que limitar a luta à mera reprodução do modelo conjugal heteronormativo seria um empobrecimento, uma perda de oportunidade de realizar mudanças significativas. O que ele propõe é algo muito mais revolucionário do que muitos militantes gays poderiam se quer aventar: a utilização da própria condição marginal como uma forma de transformar a estrutura da sociedade.
Todo programa de invenção deveria ser aberto. Segundo o filósofo. Em sua entrevista intitulada A amizade como modo de vida, ele deixa claro que todo programa deve ser vazio. Recusando-se a prescrever o futuro e a assumir o papel de “guru gay”, ele também exprimia diversas reticências em relação ao partido, salientando a importância de movimentação espontânea, não necessariamente ligada ao governo:
“Desde o século XIX, as grandes instituições políticas e os grandes partidos políticos confiscaram o processo de criação da política, quero dizer por aí que ele tentaram dar à criação política a forma de um programa político, a fim de se ponderar do poder. Penso no início dos anos 1970. Uma das coisas que é preciso preservar, na minha opinião, é a existência, fora dos grandes partidos políticos, e fora do programa normal ou ordinário, de uma certa forma de inovação política, de criação política e de experimentação política. É fato que a vida cotidiana  das pessoas mudou entre o início dos anos 1960 e agora, e minha própria vida mostra isso. É evidente que não devemos essa mudança aos partidos políticos, mas a numerosos movimentos. Esses movimentos sociais de fato transformaram nossas vidas, nossa mentalidades e nossa atitudes, assim como as atitudes e mentalidades de outras pessoas – pessoas que que não pertenciam a esses movimentos”.
Por fim, por mais que o gênero pareça ser um componente fundamental de nossas identidades, sejam elas “gays” ou “heteros”, nós somos muito mais do que nossos gostos sexuais – e é curioso notar como, em termos de gostos, o desejo sexual parece ter tanta importância em nosso mundo, a ponto de ninguém pensar em se definir ou se rotular por que gosta, por exemplo, de comer ostras ao vinho ou beber suco de manga. As palavras que usamos e os pensamentos que fomentamos definem as “coisas” que somos, como uma construção contínua da realidade, que será mais ou menos rica a depender de nossa militância individual em prol de um mundo mais rico em termos de possibilidades relacionais. Um mundo em que as diferenças são respeitadas, ainda que não inteiramente compreendidas. A bandeira do arco-íris, deste modo, seria a representação de um desejo sexual. Seria a representação daquilo que vem após as tempestades, um sinal de aliança e de coexistência possível das diferentes cores, num mundo que viabilize o encontro e a amizade entre as pessoas.
O GENE GAY – CIÊNCIA A SERVIÇO DE IDEOLOGIAS
A busca por uma “essência biológica” para o homossexual persiste no imaginário popular, sobretudo por conta da divulgação de pesquisas (refutadas) em torno do suposto gene gay. Falo especificamente sobre uma das pesquisas mais conhecidas sobre a homossexualidade e Biologia, realizada pelo biólogo molecular Dean Hamer (1951) em 1993. Nesta pesquisa, Hamer afirma que a homossexualidade é natural, assim como se pode nascer com olhos azuis, ser albino e tantas outras características geneticamente estabelecidas. Foucault não teve a oportunidade de se deparar com a pesquisa de Hamer, uma vez que já era falecido há quase dez anos, mas os acontecimentos envolvendo o suposto gene gay na década de 1990 têm relação direta com as percepções de Foucault em sua Historia da Sexualidade.
Hamer publicou na edição de 16 de julho de 1993 da revista Science um artigo intitulado Uma ligação entre marcadores de DNA sobre o cromossomo X e a orientação sexual masculina. O artigo causou impacto na imprensa da época, suscitando posicionamentos entusiasmados por parte de alguns militantes gays. Ironicamente, com igual entusiasmo reagiram alguns homofóbicos, afinal – no raciocínio deles – se há uma causa biológica para a homossexualidade, ela poderia ser curada. Curiosamente, entre entusiastas pró e antigays, quase nenhum investigou o conteúdo científico do artigo que causou tamanho tumulto. Em verdade, Hamer não havia identificado um gene gay. Seria possível dizer, no máximo, que ele transpôs as primeiras etapas que poderiam eventualmente, mas não indubitavelmente, identificar um gene gay. Com esta pesquisa, Hamer no máximo tinha a presunção, um indício de algo, mas jamais poderíamos dizer que um gene gay foi descoberto. O fato de existirem marcadores concordantes entre trinta pares de irmãos gays pode muito bem ter diversas outras explicações que nada têm a ver com preferência sexuais. E Hamer sabia disso, mas pareceu ignorar as alternativas. Tanto que sua pesquisa foi contestada por vários trabalhos posteriores como a investigação realizada em 1999 pelos médicos Rice, Anderson, Risch e Ebers, intitulada Homossexualidade masculina: Ausência de Marcadores em Xq28.
Ora, na medida em que se verifica que Hamer “pulou” etapas importantes do processo científico de investigação por esta comprometido com uma ideologia (ainda que bem intencionada e preocupada com os direitos humanos), percebem-se os perigos que emergiram a partir de tudo isso, estigmatizando homens não-homossexuais portadores do “genes suspeito” Xq28, rotulando-os como “enrustidos”, e cobrando-lhes a confissão social de seus supostos desejos.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. Os anormais. Martins Fontes.
FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade – a vontade de saber. Graal, 2007.
FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Imago.
PRACONTAL, Michel. A impostura Científica em dez Lições. Editora UNESP.

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Editora Autêntica. 

Mestrando em Filosofia Politica e Ética pela Universidade de São Paulo - USP, graduando em Astronomia também pela Universidade de São Paulo - USP e é membro da MENSA Brasil.
Texto retirado da REVISTA CIÊNCIA&VIDA FILOSOFIA ANO VI Nº 70 –  DE MAIO 2012

quinta-feira, 22 de maio de 2014

AS MINORIAS DIFERENTES

Por Renato Janine Ribeiro 
http://www.renatojanine.pro.br/
Professor de Ética e Filosofia da USP
Uma das grandes questões, hoje, é a dos direitos das minorias. É praxe destacar três: negros, mulheres, homossexuais. Mas são “minorias” bem diferentes entre si.
Negros formam uma minoria visível. Quando eram escravos, bastava a cor de sua pela para mostrar que lhe pertenciam a um branco. Liberto eram exceção, e o ônus da prova cabia a eles, não para seus pretensos donos. No Brasil, tanto tempo depois de uma liberdade duramente conquistada, continuam fazendo parte, na maioria, das vezes, das classes pobres. Direitos dos negros são, em regra, direitos sociais. Entre eles e os negros, uma fronteira distingue os que têm direitos ou não, os que podem ascender socialmente ou não. E é óbvio que os negros incluem membros das duas outras minorias, mulheres e gays, que podem sofrer preconceito dobrado ou triplicado.
Já as mulheres estão presentes, por definição, em todas as classes da sociedade. Há negras, brancas, orientais; há pobres e ricas. O preconceito contra o negro alegava, no final da escravidão, que eles seriam uma raça inferior. Alguns abolicionistas, como Abraham Lincoln, pensaram em devolvê-los à África, entendendo que seu convívio com os brancos não funcionaria. Mas uma sociedade sem mulheres não seria possível ou, melhor, não teria continuidade. Houve e há perseguição a elas, com uma argumentação pseudobiologia de que seriam inferiores aos varões. Mas a mulher não é o “outro” no sentido do negro, porque é um “outro imediato”, constantemente presente na vida até o macho branco rico. Pode ser tratada como inimiga, mas é uma inimiga íntima.  
Além disso, as mulheres não são minoria em sentido numérico. Embora nasçam mais homem do que mulheres, a expectativa de vida deles é menor: elas tendem a ser um pouco mais numerosas na população. Tal condição permite entender a afirmação de Deleuze: “Minorias” não é um dado quantitativo, mas uma característica ou qualidade que se opõe aos valores dominantes de uma sociedade.  Um grupo étnico ou religioso pode ser minoritário no sentido numérico, mas também pode ser minoria quantitativa e minoria em termos de poder e ideologia. Assim é, ou foi, com as mulheres.
Para completar, os homossexuais. Estão presentes nos dois sexos e em todas as etnias. Não têm a mesma visibilidade de negros e mulheres. Talvez por isso várias sociedades elejam – inclusive a nossa” – certos gestos indicadores da homossexualidade, mas com isso só conseguem oprimir um garoto sensível, que é alvo de chacota mesmo quando é hétero (ou uma garota mais determinada, que não brinque de bonecas). Em comum com negros e mulheres há o fato de que uma falsa ciência biológica foi usada contra eles. Negros e mulheres seriam inferiores; já os homossexuais seriam um degradação. Na verdade, toda discriminação de minorias invoca alguma biologia fake.
Muitos homossexuais foram executados por órgãos judiciais como a Inquisição, até mesmo mais modernos, ou chacinados por multidões supersticiosas só por serem o que são (o que os aproxima dos judeus sob o nazismo, que eram assassinados pelo que eram, não pelo que tivessem feito). Geralmente, constituem uma minoria quantitativa. Pesquisa de meio século atrás sugeriam que seriam 10% em qualquer sociedade, o que, por sua vez, mostraria o tamanho da repressão sobre eles, com a maior parte tendo de se reprimir ou esconder-se. Essa porcentagem, hoje, não é levada a sério, mas serve para assimilar a dimensão do drama.

O que eu quis apontar com essa rápida tipologia? Que “minoria” não é uma palavra óbvia, que designaria uma realidade única. Uma sociedade pode ter muitas minorias – e trata-las de maneiras distintas. As próprias minorias perseguidas que mencionei distinguem-se entre si. E ficam duas questões para a próxima coluna: primeira, e nossos indígenas? Segunda, por que certas minorias, como os judeus e os orientais, hoje estão praticamente fora da discriminação que, no passado, as afetou de maneira brutal?