Sérgio Sanandaj Mattos
Sociólogo, professor e ex-diretor da Associação dos
Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP). É coautor do livro Sociólogos &
Sociologia. Historia das suas entidades no Brasil e no mundo.
Em tempos de crescente desilusão com as
instituições políticas e demanda por mais transparência, ética e moralidade na
política e, por conseguinte, no poder, revisitemos Maquiavel, ainda que num
certo nível de generalidade, para tentar interpretar e compreender os desafios
de nossa época.
É difícil não reconhecer a crescente
desilusão com as instituições politicas, as inconsistências e alianças
partidárias exóticas, os desvios na trajetória representativa, entre outros
aspectos, vistos como uma afronta à modernidade e ao ideal liberal. A propósito,
na obra o moderno príncipe: Maquiavel
revisitado, seu autor, o diplomata e cientista político Paulo Roberto de
Almeida, assinala que “(...) A demagogia, já sabemos, é o mais recorrente meio
utilizado por aqueles que, carente de outras virtudes administrativas e
pessoais, desejam ascender ao principado”. De certo modo, esse cenário nos é
peculiar.
Quase cinco séculos depois de redigido, O príncipe (1513), livro escrito pelo
filosofo italiano Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli), continua a instigar
a reflexão crítica sobre “a política como forma de poder e o poder como resultante
da atuação política”. Segundo um dos interpretes de Maquiavel, Claude Lefort,
“a imprescindível obra literária de Niccolò di Bernardo Machiavelli, ou
simplesmente Nicolau Maquiavel, o pensador de Florença, não de dirige apenas
aos homens de seu tempo, está mais viva do que nunca e continua a interpretar a
prosperidade” (LEFORT, 1980, p. 11).
O PODER EM PAUTA
O poder é um tema clássico em ciência
política desde os antigos filósofos gregos até os clássicos modernos
(Maquiavel, Hobbes, Kant, Rousseau, Hegel, Marx) e chega aos contemporâneos
(Foucault). Na tradição liberal ou marxista, o tema ocupou estudiosos em todos
os tempos. Remontando as principais teorias desde Maquiavel, algumas das
principais reflexões sobre esse instigante tema têm suscitado uma extensa
discussão filosófica e científica. Na obra Potência,
limites e seduções do poder, editada pela UNESP, seu autor Marcos Antonio
Nogueira assinala “(...) O poder está em toda parte. Têm muitas faces,
múltiplas dimensões e inúmeras falas. Exibe-se e oculta-se com igual dedicação.
Ama a exposição e não vive sem o segredo. Podemos odiá-lo, cobiça-lo,
combatê-lo ou apenas temê-lo. Justamente por isso, não temos o direito de
ignorá-lo e de não tentarmos compreendê-lo. Se assim procedemos, acabaremos por
não saber bem o que fazer com o poder que temos e com todos os pequenos e
grandes poderes com que interagimos” (NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da
Unesp).
Originalmente, a civilização grega procurou
interpretar os fenômenos segundo um processo de racionalização, posição esta
que a distinguiu de outras civilizações. O estudo das ideias políticas começa
naturalmente, com os gregos antigos, pois foram eles, em sentido real, os
primeiros a ter ideias politicas. Entre as contribuições do legado grego para
as Ciências Sociais, claramente, situam-se Platão, falando da vida social e
política na obra Republica e leis, e Aristóteles abordando uma filosofia de
cunho social na obra A política.
Segundo Aristóteles, o homem é um ser
eminentemente político e social. Está ai afirmada, de modo radical, a
sociabilidade natural do homem no mundo antigo. Mas é com Maquiavel, o primeiro
grande pensador moderno, que se inaugura a ciência política. Na contemporaneidade,
presente em todas as esferas da vida social e política, o poder enquanto
categoria analítica, cientificamente, em Sociologia, Antropologia Política e
Ciência Política, nos remete a autores e obras que já se tornaram antológicas.
Em comum, elas apresentam a inquietação filosófica e política.
Nos séculos XVI e XVII, Nicolau Maquiavel (Niccolò
di Bernardo Machiavelli), um dos precursores renascentista do Sociologia,
escreveu O príncipe. Foi o primeiro grande pensador moderno e precursor da ciência
política. Seguramente no pensamento político clássico de Maquiavel, que é a
gênese do pensamento político moderno, a nação de poder aparece quando ele
introduz o enfoque do Estado em sua noção corporificada na figura do Príncipe,
que é algo histórico, porque Maquiavel está presenciando o nascimento do Estado
no século XV. Para Maquiavel (1469-1527), o Estado está surgindo como uma
organização de dominação e como expressão máxima da violência. O Estado é um
meio de cooptação e coerção que age sobre a sociedade e os indivíduos. A figura
do Príncipe é uma forma de corporificação da paz, para que esse conflito seja
amenizado, daí a necessidade de instrumentalizar-se o Príncipe. O Príncipe deve
governar pela força e pela virtù, que
se propõe Maquiavel é no sentido da capacidade e da qualidade para a realização
da historia, enquanto força criadora, racionalidade, ação calculada capaz de
fazer o homem ser sujeito de sua historia. A perspectiva de Maquiavel aponta
nesse sentido que a política não comporta voluntarismo, posto que a ação do
homem em Maquiavel é marcada pelo cálculo e pelas circunstâncias que permitem a
ação política. Fortuna e virtú são meios e fins da ação política, nos aponta
Maquiavel, sendo a virtù a capacidade, qualidade de força social, da realidade
de uma razão calculada, e a fortuna, a ocasião concreta para a realização da
ação política do homem dotado de virtù. É a circunstância que permite a
eficácia da iniciativa política.
O fato é que a visão política de Maquiavel em
tal perspectiva é fundamental quando se
discute a problemática do poder porque se percebe através dela a própria
divisão de classes, a partir da noção dos poucos e dos grandes, dos amigos e
inimigos. O centro maior de seu interesse é o poder formalizado na instituição
do Estado, e a noção de sociedade é trabalhada por Maquiavel no sentido de uma
capacidade de o homem influir ou participar do Estado.
AMAR OU TEMER
O Príncipe é colocado no plano das paixões
entre o ser amado e temido. O desejo de poder é algo que se coloca muitas vezes
de modo insaciável, requer certa precauções, como o temor ao desprezo e ao
ódio. Por outro lado, Maquiavel, ao colocar a exploração no plano político onde
os grandes têm o desejo de dominar e governar, nos remete a uma relação de
antagonismo e de complementaridade. Uma boa sociedade em tal perspectiva seria
aquela que procura se consolidar e onde o “poder” do Príncipe é algo que emana
da própria sociedade.
Maquiavel comporta várias interpretações.
Quando coloca a questão da desigualdade histórica discursa como verdadeiro
ideólogo das classes emergentes, chamando os homens que sofrem o processo
histórico e colocando a virtù
enquanto capacidade e força social para esta realização. Maquiavel nos mostra
ainda que o Príncipe não deve camuflar a luta de classes. Afinal, Maquiavel
descreve um momento histórico em que a luta de classe acontecia às claras, para
justificar o poder do Príncipe através das habilidades, da prudência, das
alianças e do segredo, de sua política imediata não se tornar pública.
Parece ser verdadeira a reciprocidade entre o
pensamento científico e as configurações sociais e políticos da vida, princípio
especialmente referendado pela correspondência entre o pensamento de Maquiavel
e as condições de existência social e políticas atuais. A política em Maquiavel
é redefinida como correlação de forças. O homem faz história. Para fazer
historia, os homens têm de se organizar. Para Maquiavel, fazer historia é fazer
de modo organizado. Não posso fazer historia de modo aleatório, mas sim com os
recursos de que disponho, utilizados de forma racional. “Eu não faço a historia
dos meus sonhos. Eu faço a historia possível”. Maquiavel faz apologia da razão
do Estado e exalta a força ou vontade de poder (virtù) como primeiro princípio
e razão ultima no governo dos povos. A virtù será o meio, a disposição para
atingir os fins e para o agir. A fortuna será os fins. A virtù é o meio no qual
a ação poderá funcionar com êxito
No tempo de Maquiavel, as desigualdades não
eram naturais e sim históricas. As desigualdades vão ver um campo político que
vai exigir um esforço, através do jogo de forças. No obra, chama-nos a fazer
historia num momento em que a historia tinha por interesse a unificação da
Itália. Neste momento, fazer historia, fazer política seria como que uma
mercadoria capaz de circular no nível econômico. Maquiavel não representa no
seu discurso o interesse burguês. Assumir isto é um jogo perigoso. O discurso
de Maquiavel serve aos interesses de qualquer classe social emergente. Segundo
Kant, até Marx, quando clamou “Operário de todo o mundo, uni-vos”, fez o mesmo
discurso de Maquiavel, num outro momento da história, servindo ao proletariado
emergente e organizado. Para Maquiavel, quem quer fazer historia e participar
da historia deve se organizar e ter a virtù, senão vai ficar de fora da
historia. Isso, em Maquiavel, se faz presente até na obra do sociólogo
americano Wright Mills, em seu livro A
imaginação sociológica, quando diz que os “indivíduos não devem ser objetos
da historia, mas sim agentes capazes de fazer a historia”. Propões Maquiavel em seu discurso para o
estadista um virtù que se distancia da fantasia e do sonho. Política não se faz
só com boas intenções, mas também com a força da inteligência.
Na sua modernização da necessidade, Maquiavel
de certo modo condena os passivos e os que agitam sem se situarem no contexto.
Nós não fazemos historia quando cruzamos os braços, nem quando caminhamos sem
um plano, sem um rumo. É necessário perceber o caminho, conhecer o terreno em
que se pisa, para evitar erros. Pressupõe Maquiavel, no dramático do poder e na
correlação de forças, que somos marcados por interesses diversos. A vontade
seria o sentido eficaz. Nesse sentido, quem quer fazer política num campo minado
por interesse tão divergente vai ter de operar. E os que querem a unificação
terão de usar a força. É a partir daí que vem a política enquanto correlação de
forças.
Maquiavel está querendo assessorar não sobre
os sonhos, não sobre o passado, mas sim para tornar o cálculo o mais exato possível.
Isto é uma modernização da moralidade em Maquiavel. Para ele que eu pense o que
quiser subjetivamente calcule a minha ação num sentido eficaz. Como exemplo
podemos citar: que o infrator tenha medo da lei. Ele nos propõe fazermos
política com força, mas articulada com a razão. Força no sentido de fazer a
própria historia. É um apelo à razão, visto que toda política visa implantar
uma nova ordem, e os que tem mais força conseguem implantar essa ordem.
A literatura de Maquiavel nos remete a pensar
na arte de governar. Possibilita a análise das bases do poder político.
Redefine as virtudes. Apresenta o conceito de virtù enquanto força criadora,
racionalidade, ação calculada e qualidade do homem de ação que o capacita a realizar
sua historia. Finalmente, sem querer abreviar, é difícil não reconhecer eu,
discutindo a natureza do homem, da sociedade e do poder, Maquiavel introduz a
historia no pensamento político, revolucionando a ciência e colocando a
historia como um paradigma.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, P. R. de. O
moderno Príncipe: Maquiavel revisitado. Brasília: Edições do Senado
Federal, 2010, v. 147.
FOUCAULT, M. Microfísica
do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
LEBRUN, G. O que é
poder? São Paulo: Brasiliense-Abril Cultural, 1984 (Primeiros Passos, 24).
LEFORT, C. A primeira figura da filosofia da práxis. Uma
interpretação de Antonio Gramsci. In: QUIRINI, C. G.; SOUZA, M. T. S. R. de
(Orgs.). O pensamento político clássico:
Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São Paulo: T. A. Queiroz,
1980.
MACHIAVELLI, Niccolò (1469-1527). O príncipe, escritos políticos. Tradução Lívio Xavier. 2ª. Ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os
pensadores).
MAQUIAVEL, N. O
príncipe. São Paulo: Editora Escala, (Grandes Obras do Pensamento
Universal,12).
NOGUEIRA, M. A. Potência,
limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da Unesp.